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Itapira, 28 de Mar�o de 2024
Artigo
03/03/2012 | Cheiro de terra molhada.

 

 
 
Nasci na rua do Pescador. Hoje embaixador Pedro de Toledo. Essa rua era a única que ligava o centro ao bairro do Cubatão. A transposição do ribeirão da Penha era feita por uma velha ponte, cujo leito carroçável era coberto por terra. O mesmo tipo de chão que começava no topo do morro e se distribuía por todos os bairros além ribeirão. Acima daquele topo, a cidade se apresentava com paralelepípedos. Tínhamos, então, o “morro de terra” e a “ponte de terra”.
 
A casa em que nasci distava três quarteirões do topo do “morro de terra”. Mas quando me dei por gente, estava morando no primeiro quarteirão, num sobrado que dava vista panorâmica dos bairros Izaura, Ilze e Cubatão. Um pedaço fortemente dominado por descendentes italianos. Ali cresci e morei até o matrimônio. 
 
Nos fundos daquele sobrado tinha um pequeno pedaço de terra. Não mais do que quinze metros quadrados. Ali meu pai plantou, ao tomar posse, um pé de uva que ele dizia que tinha vindo diretamente da Itália, trazido por um amigo dele. Plantou-se ali o elo com as nossas origens em homenagem ao meu nonno Alessandro. Essa planta vive e produz até hoje, todos os anos, poucos cachos com grãos brancos, com viés rosado, vistosos. Uvas que apresentam um sabor diferenciado das tradicionais consumidas em nossa região. Meu pai se orgulhava daquele pequeno pedaço de chão. Ele dizia que aquela terra fofa meio escura era de boa qualidade. Tudo que fosse plantado ali daria bons frutos e verduras frescas deliciosas. De fato, ali meu pai mantinha uma horta e extraía alface, almeirão, rúcula, couve e ervas verdes nos tempos adequados, na quantidade necessária. Lá, também, floresciam ramas de abóboras e um ou dois pés de mamão por ano. Dos brotos das abóboras, suculenta sopa de cambuquira era preparada pela minha mãe. Os mamões eram amarelos, gordos, doces e saborosos. Tipo de mamão que não mais existe, há tempos. Meu pai explicava que a poluição era responsável pelo fim daquela espécie.
 
Todas as tardes, depois do último apito da Fábrica de Chapéus Sarkis, meu pai voltava para casa, tomava banho e antes de sentarmos na soleira da porta da frente, ele regava as plantas e tirava as ervas daninhas que insistiam em roubar-lhes os nutrientes. 
 
Eu era criança e aquela cena a tenho gravada na memória até hoje. Lembro de não me cansar, apesar de ficar o tempo todo com a cabeça inclinada para trás, olhando para cima, vendo tudo o que meu pai fazia. A cada instante, eu lançava-lhe alguma pergunta. Ele, pacientemente, respondia, sem se incomodar de dar quase as mesmas respostas, todos os dias.
 
Enquanto aquela terra recebia a água regada, exalava um perfume inesquecível. Um cheiro que mexia comigo e me fazia perguntar: “pai que cheiro é esse?” Ele respondia: “é cheiro de terra molhada”. 
 
Esse cheiro de terra molhada me acompanha e quando o sinto, vem uma sensação indescritível. Seja quando chove - não em qualquer lugar – ou quando se rega jardins ou hortas sinto-me transportado a quase cinquenta anos. Nessa hora, olho para cima para tentar ver meu pai, assobiando, com a borracha na mão, esguichando água, cuidadosamente, sobre um pequeno grupo de plantas sedentas.
 
O compositor Toquinho, talvez depois de sentir a mesma sensação, escreveu uma música que diz: Era uma vez. Um lugarzinho no meio do nada. Com sabor de chocolate. E cheiro de terra molhada...
 
Naquele tempo, não me lembro, acho que eu ainda não conhecia chocolate. Mas aquele lugarzinho no meio do nada cheirava terra molhada.
 
Fonte: Nino Marcatti

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