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Itapira, 26 de Abril de 2024
Artigo
03/04/2011 | E a morte, o destino, tudo!

E a morte, o destino, tudo!

A ciência, apesar dos pontos obscuros pela insuficiência de vestígios, propala que evoluímos dos primatas. Os hominídeos datam perto de dois milhões de anos. O Homo Sapiens (o homem sábio), nosso ancestral mais íntimo, registra-se há quarenta mil anos. As primeiras cerimônias evidenciadas de enterro chegam aos cento e cinquenta mil anos. Antes disso, mortos, nos igualávamos aos animais. Decompúnhamos ao ar livre, em qualquer lugar ou nas ribanceiras mais próximas.

Os primeiros funerais primitivos eram destinados aos líderes e aos guerreiros. Serviam à manutenção da unidade do grupo e para a reverência das conquistas. Mais tarde, na medida em que as relações familiares começaram a se estabelecer, ganhava-se a dignificação pós-vida. Tínhamos, então, um lugar para cairmos mortos.  Com a dispersão religiosa, na medida em que se recebiam respostas ao “de onde viemos?” e “para onde vamos”, cada grupo desenvolveu mecanismo próprio para a hora derradeira. Uns sepultavam em cavernas ou próximos às casas em que viviam ou nos locais considerados sagrados. Outros construíam obras faraônicas para reunir e diferenciar as famílias e o poder. Os templos reservavam as áreas próximas aos altares para os fiéis mais importantes e as periféricas para os demais praticantes. Com o crescimento da população, com o processo de urbanização, para a garantia da assepsia e à crescente laicização foram criados os cemitérios a “céu aberto”, preferentemente nos pontos mais altos das cidades para encurtar a viagem ao Céu.

Uma digna representante de família tradicional itapirense contou-me, recentemente, um fato que ela recorda como se fosse hoje: foi o dia em que o pai dela entrou em casa, portando um documento e declamando ser aquele o momento mais feliz da vida dele. Ele tinha acabado de adquirir um terreno no Cemitério da Saudade. Local onde estaria garantindo a todos, o descanso eterno, sem incômodos. A filha saudosa, hoje se entristece toda vez que visita o túmulo construído naquele terreno. Conclui que a alegria do pai foi quase à toa. Ela não se conforma e incomoda-se com a insensibilidade dos responsáveis por aquele campo santo.

Domingo passado, acompanhei o sepultamento da mãe de um velho amigo e visitei o túmulo do meu pai.  Aproveitei a oportunidade para ver de perto os reclamos da amiga inconformada e incomodada. Num pequeno giro, vi que ela está coberta de razão. Transpira-se, em todo canto, o desrespeito, a falta de cuidados e a desorganização. Tive a sensação de andar por um cemitério em processo avançado de “favelização”. Muitos túmulos são acessados pisando-se sobre os outros. A arborização, que purifica o ar, produz sombra e dá leveza ao ambiente, a cada dia, é reduzida. Tiram-se árvores - não é de hoje - para abrir espaços para novos inquilinos ou pelas folhas que caem ou pelas raízes que se alastram. Falta vigilância e limpeza. Roubam-se vasos e qualquer ornamento que se coloque sobre as lápides, quando os sepultados não são invadidos e arrancados os objetos que lhes acompanharam na vida terrena. Um povo que desrespeita a morte menospreza a vida. Cabe ao poder público, a carga do sentimento popular.

Sei que existe uma idéia de arborizar as avenidas. Quem sabe, não venha no pacote, um programa de manutenção mais consistente e pragmático para manter o cemitério limpo e organizado, com segurança competente, vinte e quatro horas por dia. Talvez possa ser exterminada uma espécie de máfia “imexível” - ao que transparece - de reformadores e construtores de túmulos, que lá atua e explora familiares indefesos, nos momento de fragilidade.  Quem sabe, não se resolva o problema das tumbas abandonadas, onde ninguém sabe quem nelas estão enterrados, identificados apenas por números, que aumentam o estado de abandono da nossa velha necrópole. Será que um recadastramento, com tempo e divulgação eficiente, não daria os nomes de todos os espaços ativos? Dos sem dono, não recadastrados, os restos mortais poderiam ser transferidos para um sistema de gavetas, ocupando menos espaço, respeitando-se, entretanto, a numeração de origem. Os terrenos liberados poderiam ser reservados para ajardinamento e para facilitar, em alguns casos, a circulação entre os sepulcros.

O cemitério não é um depósito qualquer. Lá nos encontramos com o nosso passado e vislumbramos a moradia futura. Desmerecer essa necessidade humana é desonrar a própria vida.

Depois de lutar treze anos contra um câncer na região abdominal, tombou nesta terça, aos setenta e nove anos, o ex-vice-presidente. Certo dia, num lampejo socrático, Alencar disse: "Você não sabe o que é a morte, então você não tem de ter medo da morte. Você tem de ter medo é da desonra, dela você tem de ter medo, isso mata você."

A vida nos ensina que tem gente que não tem medo da morte e, muito menos, da desonra.

Fonte: Nino Marcatti

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